A VOZ DO INVISÍVEL
Ensinamentos
O título “Ensinamentos” é proposto a partir de uma organização inicial que apresentei à minha orientadora no dia 30/03/23 do seguinte modo:
Qual é o silêncio que ensurdece?
Na semana seguinte, levei para aula a imagem 0 disponível na aba Acervo Comentado. Ao apresentá-la fui percebendo, por diversas vias, que existiam relações entre “Qual é o silêncio que ensurdece?” e a imagem 0 a qual escolhi intuitivamente para trabalhar nesse processo. Ao observar a foto e destacar alguns elementos, como por exemplo: sentimentos, as mãos esculpidas, cores, expressões, contrastes, acrescentei à questão acima uma outra ideia: “parece que visto aquilo que fizeram comigo”.
Neste mesmo dia acrescentei ainda à composição “Ensinamentos” outros elementos, entre eles: vestir uma corda, tentar usar roupas menores que meu tamanho, um corpo amarrado às palavras
estupro, mulher, puta, depravada, dissimulada, manipulável, mentirosa, entre outras.
Neste momento compreendi com nitidez o campo de ação e o campo semântico desta composição. Posteriormente decidi:
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criar um vídeo com mulheres vestindo preto;
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utilizar blocos de concreto;
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escrever um poema a partir do tema Mulheridade;
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investigar a possibilidade de um figurino que remetesse à ideia do padrão imposto como experiência/vivência Mulher princesa, iniciando pela estética Disney e avançando em diversas repercussões ao longo do projeto.
Este padrão chamo de “Mimosa”
Esmiuçando o tema desta composição, a intitulei “Ensinamentos” por conta desse mesmo padrão de gênero heteronormativo e patriarcal imposto e inalcançável que nos é ensinado desde o nascimento. Esse é o campo semântico que, nesse projeto artístico, delineia o que é ou o que não é ser mulher. A ideia inicial era colocar a performer numa rua movimentada (espaço indefinido), amarrada em blocos de concreto com um fio de nylon, roupas infantis que não coubessem nela. Simultaneamente, ao fundo da performance, na parede de um prédio, seria feita a projeção de um vídeo no qual apareceria um coro de mulheres repetindo palavras comuns na violência contra a mulher que se repetem e as violentam diariamente.
A estrutura seguiu essa diretriz até o momento (11/05) e iniciei os experimentos com a materialidade da cena, entre eles a procura de espaços e experimentos com materiais e figurinos. Penso numa outra possibilidade de ampliar o espaço entre a performance (Gramado ao lado do Obelisco da UFSM) e o espaço da projeção do vídeo de Mulheres (Parede do bloco 30 da Casa do Estudante Universitário). Trata-se de espaços próximos e que poderiam ser enquadrados por um único espectador simultaneamente em formato e dimensões não convencionais. Com isso mantenho a simultaneidade do tempo das ações espacialmente muito ampliadas.
Há ainda uma terceira proposta na qual a performer se amarraria às árvores de um bosque que fica próximo ao Planetário da UFSM e utilizaria a parede externa do Espaço Multiuso para a projeção do vídeo de Mulheres. Destaco que o conteúdo do vídeo tem linguagem imprópria e por isso entendo com a classificação indicativa de 16+. Este conteúdo talvez limite as apresentações públicas, tais discussões estão em processo.
CONFLUÊNCIAS
A segunda composição performativa denominada "Confluências" partiu da necessidade de abordar especificamente o tema transgeneridade. A proposta iniciou em um diálogo com a orientadora no qual ponderamos e problematizamos as consequências de inserir outros temas na estrutura “Ensinamentos”, já por mim delineada. Destaco que as discussões não abordaram questões de valores quantitativos, e sim foram provocações sobre os temas e o desenvolvimento do processo de criação visando ampliar o olhar e pensar a produção. Deste modo, tive tempo para pensar e fazer as minhas escolhas. Neste sentido optei por deixar a transgeneridade presente em segundo plano na performance “Ensinamentos”, e mantive o tema Mulher, sob os padrões heteronormativos e patriarcais impostos, em primeiro plano.
A partir dessa escolha, decidi criar uma outra composição performativa e abordar a transgeneridade como tema central. Assim, penso a vídeo-performance "Confluências" como um desdobramento de “Ensinamentos” que evolui delineando o universo da Mulher, para a transgeneridade e a autoidentificação. Para esta composição que envolve além da criação em vídeo inclui ações presenciais e um outro poema que escrevi.
A primeira parte deste poema (ainda sem nome) escrevi em 2021 após saber do suicídio de um homem trans por conta de ataques na internet. Isso me fez sentir medo ao pensar na probabilidade de que poderia, em algum momento, ser uma pessoa querida, amada e próxima. Nessa época (2021), ainda me identificava enquanto mulher cis. Em janeiro de 2023 iniciei minha transição social como pessoa não binária e, após ler sobre o conceito de vida após a morte dentro da vertente budista de Nichiren Daishonin, no livro “Desvendando os Mistérios da Vida e da Morte”, escrito por Daisaku Ikeda (2019), escrevi um outro poema: Existe vida após a morte. Neste processo de criação uni ambos, ou seja, a totalidade do poema tem a parte 1 ainda sem nome, e a parte 2 que segue com o mesmo título
(2021) Poema sem nome
À todas as pessoas trans que eu amo, e aquelas que ainda não conheci:
se eu nunca senti tanto medo imagino o que é ocupar a epiderme de vocês
nunca conheci um grupo tão forte quanto esse
e olha que ser mulher cis não é moleza mas ser travesti…
é, definitivamente, outra história
faz dois anos que despertei do cistema
e a cada dia que passa vejo a importância disso
claro que ainda há muito o que fazer
não me dou por vencida
essa gente acomodada que é o problema
por algum tempo bati minha cabeça pensando
em como algumas pessoas têm extrema dificuldade
em considerar outras realidades como válidas
não que essas precisem de validação mas só posso imaginar
passar todos os dias da minha vida
tentando convencer os outros de que, eu, existo
ou nem isso, passar todos os dias da minha vida
cercada de pessoas que fingem
que eu não existo
para reexistir é preciso estar vivo
e se não conseguem te ignorar
se você faz barulho demais
se você quase que consegue um espaço
te silenciam
te suicidam
te apagam
mas eu vejo cristalino meu papel no meio disso tudo
então parto do pressuposto de que essa história não diz respeito a mim
à minha vivência ou à minha voz
logo, tenho função de suporte.
estendo minha mao, abro meus braços, ladro e mordo se for preciso
mas não posso simplesmente conceber toda essa ladainha de que o destino das pessoas que amo e admiro é ter a vida ceifada antes dos 35
de que, para existir, seja necessário um laudo
a transgeneridade não é diagnosticável
não é uma epidemia
não é um assunto clínico
é social.
é vida.
é história.
é resistência.
é humano.
(2023) Existe vida após a morte
hoje, a transição é a minha realidade.
vou morrer aos 35?
Pois então,
quando eu morrer
me queimem
ao som da maior festa
que conseguirem fazer
cantem mantras
e também um pancadão
façam de mim
uma vibração
presente numa canção
com todo meu amor
peço que me ajudem
assim como foi
em outros nascimentos
e mortes do meu ser
me abracem e
me ajudem a ascender
a agarrar a paz
e ali fazer pouso
por que sem repouso
não consigo continuar o voo
existe vida após a morte
eu sobrevivi
existi
dia após dia
ano após ano
nascimento e morte
inerentes ao ser humano
sofrendo e Transformando
Inicialmente o projeto foi pensado como um vídeo de pessoas trans reproduzindo o poema e trazendo, assim, o protagonismo desses corpos. Contudo, venho trabalhando na possibilidade de produzir uma Performance Fílmica, ou seja, as imagens captadas que antes fariam parte de um conteúdo previamente gravado e, posteriormente editado, agora seriam transmitidas simultaneamente via plataforma digital.
Performance Fílmica: Quando em uma cena ou em qualquer outro lugar os atores são filmados ao vivo e sua imagem é retransmitida ao público, sem que eles sejam necessariamente visíveis "em carne e osso" fala-se de "performance fílmica": trata-se de fato de um filme que é mostrado, mas a ação é produzida e retransmitida ao vivo. (PAVIS, 2017, p. 226)